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The Bloodhound: adaptando Edgar Allan Poe

Vez ou outra nos deparamos com algum filme que nos deixa com aquela sensação agridoce de "o que diabos eu acabei de assistir?". E The Bloodhound é uma dessas produções. Mas antes de qualquer coisa, é bom estabelecer os motivos de tal afirmação, para que você leitor(a), não se decepcione quando for assistir.


Com um elenco reduzido e ambientado inteiramente em uma mansão, o longa de estreia do diretor Patrick Picard é uma livre adaptação de A queda da casa de Usher (The fall of the house of Usher), conto escrito por Edgar Allan Poe. E apesar das consideráveis discrepâncias entre as obras, um dos elementos comuns é a atmosfera estranha emulada pela casa, sem que os envolvidos consigam identificar as causas.


Que era - pensava eu, imóvel -, que era isso que tanto me atormentava na contemplação da Casa de Usher? Era um mistério inteiramente impenetrável; tampouco conseguia compreender as ideias nebulosas que me assaltaram. ("EDGAR ALLAN POE: Histórias Extraordinárias", seleção, tradução e apresentação de José Paulo Paes


No filme, essa estranheza começa desde os minutos iniciais. Em sua angustiante cena de abertura, vemos uma figura humanoide com o rosto coberto à la René Magritte saindo das águas e se arrastando por um longo caminho até que possa enfim se abrigar dentro de um armário até então desconhecido.


A tensão só aumenta quando conhecemos os protagonistas da história: Francis (Liam Aiken) e o herdeiro e proprietário da mansão Jean-Paul (Joe Adler), dois amigos de infância que se reencontram após um longo período de distância, em uma tentativa de "reacender" a amizade devido ao estado de saúde precário de JP.


Importante dizer que além dos dois, há ainda uma terceira personagem tão enigmática quanto no conto. Vivian (Annalise Basso) é irmã gêmea de Jean-Paul e assim como ele, sofre de males obscuros que a medicina comum não consegue justificar. Mas diferente dele, seu estado parece muito mais grave, tornando-a reclusa e até mesmo agressiva.


 

AVISO DE SPOILER

O texto a seguir possui revelações sobre a trama.

Recomendamos que assista ao filme antes de ler!


Como é possível de se imaginar, a tentativa de fortalecer a amizade não sai como o planejado. A personalidade excêntrica de JP e a óbvia diferença de amadurecimento entre os amigos torna a conexão quase que impossível, mas não por falta de tentativas. As cenas dos dois revivendo uma antiga brincadeira e a de Jean-Paul exibindo um filme pornô caseiro são de um desespero e angústia absurdos, sendo possivelmente os momentos mais indigestos de toda a produção.


A estética também ajuda para a sensação de estranheza. Demonstrando uma visão clara e objetiva do diretor principiante, suas técnicas se assemelham muito as de Yorgos Lanthimos, trazendo um constante incômodo em suas cenas cruas, mesmo sem que nenhuma violência gráfica seja exposta.


Tal estranhamento também se dá pela obra em que se inspira. No conto de Poe acompanhamos a narração em primeira pessoa do que vem a ser o Francis no filme. Ele descreve sua chegada na mansão, bem como o comportamento não natural do amigo, e os acontecimentos assustadores que se dão após a morte da irmã.



Mas se no conto a metáfora sobre a decadência familiar fica clara, no filme isso pode ficar um pouco mais enevoado. E isso muito provavelmente se dá por duas grandes diferenças entre as obras: a inserção da "figura humanoide com o rosto coberto à la René Magritte" previamente citada, e os acontecimentos após a morte de Vivian.


A figura inexistente no conto (que também dá título ao filme) ocupa em The Bloodhound um papel de personificação para a desavença entre os amigos. Ela sempre aparece após momentos de tensão entre os dois, ou ainda quando algum fundamento se quebra dessa já fragilizada amizade. Seu rosto coberto pode inclusive fazer alusão a obra Os Amantes (The Lovers) de René Magritte, onde um véu cobre as faces de um casal durante o beijo, simbolizando a barreira emocional de se revelarem totalmente para enfim se conectarem por completo.


Ouça nosso episódio sobre #001 Vivarium


Além disso, a criatura também preenche a lacuna deixada pela "vivacidade" da casa. No conto, a mansão de Usher aparenta causar certa influência em seus moradores, revelando inclusive a crença de seu dono em atribuir vida a objetos inanimados. Já no filme, é a criatura quem fica responsável pelos acontecimentos bizarros do local.



Agora quanto a resolução, o filme toma rumos diferentes do esperado. Poe finaliza a história com a fuga do narrador após ter visto a irmã do amigo retornar dos mortos para cair nos braços do irmão, agora já cadavérico, enquanto a casa também começa a ruir. Mas se isso pode soar um tanto quanto autoexplicativo, o longa ganha um aspecto mais simbólico, e até mesmo melodramático.


Quando Francis assume também ser um solitário irreparável que tem como único amigo o excêntrico JP o qual ele tanto parecia sentir repulsa, a casa entra em estado de alerta, fazendo com que seu dono fuja para o local onde sua irmã morta descansava. Concretizando ainda o sonho de Jean-Paul, o "bloodhound" sai pela porta uma vez que houve entre os dois um gesto de ternura genuíno, levando-nos a acreditar que assolaria outra residência.


Mas talvez a maior diferença se dá na inversão de papeis. Francis passa a herdar a mansão do amigo, recebendo também um bilhete do mesmo, selando assim o destino cruel que o espera: "agora você sabe como é ter tudo e não ter um amigo". Inevitável questionar essa escolha tão simplista, visto a crescente tensão que a narrativa havia construído até então.



Vi as lágrimas dos oprimidos, mas não há quem os console; o poder estava do lado dos seus opressores, e não há quem os console. Por isso considerei os mortos, mais felizes do que os vivos, pois estes ainda têm que viver! No entanto, melhor do que ambos é aquele que ainda não nasceu, que não viu o mal que se faz debaixo do sol. (Eclesiastes 4:1-3)

A possível mensagem de "dinheiro não compra tudo" parece um tanto quanto defasada e até mesmo dissonante do restante da produção. Mas ao mesmo tempo fica a dúvida se tal decepção não foi causada pela esperança de uma trama mais elaborada e complexa, algo que o filme em sua natureza nunca se propôs a fazer.


De qualquer forma, pode-se dizer que The Bloodhound é uma recomendação interessante para os fãs de cinema minimalista, e para aqueles que procuram uma produção aberta a interpretações e teorias. Quanto a seu papel de adaptação, é inegável sua qualidade, tanto pela similaridade de atmosferas, quanto pelas suas decisões criativas. Patrick Picard fez sua estreia de maneira corajosa e ambiciosa, e com certeza é alguém que iremos acompanhar a partir de então.


 

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