O Assassino da Furadeira (1979)
- Tati Regis
- 9 de ago.
- 4 min de leitura
Abel Ferrara tem sido, pra mim, um desses diretores que a gente não consegue só assistir, tem que sentir, reagir e até rejeitar um pouco. Ele incomoda, e acho que é aí que mora a força dos filmes dele. Foi por isso que quis ver O Assassino da Furadeira (1979) na tela grande, numa sessão à meia-noite e num cinema de rua. O filme é um combo de fúria urbana, violência crua, Nova York suja e muito, muito barulho. Mas nada me preparou pra experiência de ver isso tudo na tela grande, no escuro total, com o corpo meio cansado do dia e a rua lá fora em silêncio. Parecia que Ferrara tinha arrastado a cidade pra dentro da sala e jogado na nossa cara.
E talvez tenha mesmo, porque, dada as devidas proporções, Recife também tem um pouco de Nova York. Não a dos cartões-postais, mas a que aparece nos filmes de Ferrara: inquieta, quebrada, suada, onde o concreto pesa e tudo parece prestes a desabar. Aquela cidade nervosa, jorrando violência e desejo. Cláudio Assis entende bem isso e mostra em obras como Amarelo Manga (2002) e Febre do Rato (2011) um Recife tão cru, tão intenso e tão caótico quanto a Nova York de Ferrara. Os dois filmam a cidade como uma ferida que não cicatriza, onde os personagens andam no fio da navalha, entre a arte e o colapso.
Em O Assassino da Furadeira, temos Reno Miller, interpretado pelo próprio Abel, um pintor em crise, que vive num apartamento apertado com a namorada Carol (Carolyn Marz) e a presença constante de Pamela (Baybi Day), a amante de Carol. Enquanto tenta terminar um quadro que supostamente será sua grande arte que o fará pagar as contas, Reno é consumido por tudo aquilo que o cerca: seus vizinhos com o som insuportavelmente estridente da banda punk The Roosters, o desprezo do agente Dalton, a fome, o cansaço, o acúmulo de tensão, a conta de telefone cada vez mais alta e as cobranças. Até que, diante do colapso, canaliza sua frustração numa série de assassinatos contra moradores de rua usando uma furadeira elétrica. Sim, é tão brutal quanto parece, mas também, num certo nível, trágico.
Filmado na Nova York decadente do final dos anos 70, o longa parece escorrer pelos cantos, sujo de realidade e colado à pele de quem já andou sem dinheiro pelo centro, sem saber para onde ir. Ferrara filma a cidade como ela era: caótica, feia, viva, em ruínas. E filma seu protagonista como um reflexo distorcido desse cenário, um homem que busca criar, mas só consegue destruir. É um estudo de personagem disfarçado de slasher, o retrato de um artista em crise que troca o pincel pela furadeira.

Reno Miller entra fácil na linhagem desses personagens esgotados, solitários, à beira de um colapso silencioso. Lembro de Travis Bickle (Robert De Niro) de Taxi Driver (1976), que também vaga por uma cidade podre, se sentindo cada vez mais desconectado de tudo. Ou como Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) em Coringa (2019), que transforma sua impotência em espetáculo violento. Mas Reno é ainda mais incômodo porque não tem o carisma da loucura cinematográfica. Ele é meio patético, meio irritante, quase invisível e justamente por isso, tão real. Ele não tem um plano, nem um discurso, nem uma fantasia de redenção. Só tem uma fúria contida, que vai escapando pelas rachaduras da rotina até virar sangue.
Esses personagens - artistas, palhaços, motoristas, pintores - são quase sempre homens solitários que acreditam estar sendo ignorados por um mundo injusto. E talvez estejam mesmo. Mas, o que fazem com essa dor é o que os separa do resto. Reno, no fundo, quer ser visto, respeitado, compreendido, só que ninguém olha. Nem o agente, nem a namorada, nem a cidade. E então ele fura com raiva, com desespero, talvez até com alguma esperança de que alguém finalmente veja o que ele é. Mesmo que seja um monstro.
Esse desconforto constante ecoa o estilo de Ferrara, que começava ali sua carreira entre o cinema quase pornográfico e os filmes de gênero. Antes de The Driller Killer, Ferrara havia dirigido Nove Vidas de uma Gata Molhada (1976, 9 Lives of a Wet Pussy), e não à toa esse passado se infiltra em seu primeiro longa “sério”. Há algo de cru, de desprotegido, no modo como ele filma corpos e tensões sexuais, mesmo quando o sexo em si não aparece. Tudo é desejo represado. E onde não se pode amar, se mata.
A classificação de video nastie no Reino Unido ajudou a cimentar a fama do filme como algo proibido, quase indecente, no entanto, reduzí-lo a um gore exploitation seria simplificar demais. Apesar da violência explícita e do apelo gráfico (o sangue espesso jorrando de uma testa perfurada nunca é sutil), há aqui algo mais próximo de Psicopata Americano (2000) do que de Sexta-feira 13 (1980). Como Patrick Bateman (Christian Bale), Reno é um artista do colapso urbano, alguém que vive à beira do delírio, só que, diferente de Bateman, ele não tem grana, nem status, só raiva, miséria e uma furadeira.
Em alguns momentos, o filme lembra também o frescor sujo de outras estreias de diretores que viriam a marcar o cinema anos depois. Como Garotas Canibais (1973), de Ivan Reitman, ou Calafrios (1975), de Cronenberg, há em The Driller Killer uma mistura de desespero financeiro com urgência criativa, como se o filme tivesse que existir a qualquer custo. E ele tá ali, sendo tosco, imperfeito e com uma força difícil de ignorar. Talvez seja isso que faz ele bater tão forte ao assisti-lo e após.
Título original: The Driller Killer (Brasil: O Assassino da Furadeira)
Direção: Abel Ferrara
Roteiro: Nicholas St. John
Elenco principal: Abel Ferrara (como Reno Miller), Carolyn Marz (Carol), Baybi Day (Pamela), entre outros
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