GAROTAS CANIBAIS (1973)
- Tati Regis
- 29 de mai.
- 4 min de leitura
De vez em quando, aparece um filme que parece ter saído de um devaneio coletivo, algo tão improvável que a primeira reação é achar que é invenção. Foi mais ou menos isso que senti ao esbarrar com Garotas Canibais, filme de 1973. À primeira vista, parece um experimento perdido entre gêneros, feito por pessoas que ainda não sabiam exatamente o que estavam fazendo e, de certa forma, é isso mesmo. Mas é justamente aí que mora o interesse. Porque por trás da estética barata e do humor estranho, há uma inquietação latente que, talvez, só os anos 70 permitissem. Não é um dos moldes tradicionais, nem quer ser levado a sério, mas isso não o impede de dizer coisas importantes, ainda que por acidente. E talvez por isso mesmo ele mereça ser olhado com mais atenção.
Dirigido por Ivan Reitman e, talvez aí resida a surpresa que, o mesmo diretor de Os Caça-Fantasmas (1984), Um Tira no Jardim de Infância (1990), Júnior (1994), entre outros, tenha começado sua carreira realizando um filme de terror canibal e não um, digamos, terror convencional. A produção canadense de baixo orçamento, comédia improvisada e sangue falso, é estrelada por ninguém menos que um quase irreconhecível jovem cabeludo Eugene Levy e Andrea Martin, antes de se tornarem nomes fortes da comédia norte-americana. É o tipo de filme que parece uma piada interna entre nerds de cinema B, mas que existe, e carrega consigo mais do que apenas exageros e bizarrices.
A história é simples: um casal em crise viaja para uma cidadezinha canadense e acaba esbarrando numa lenda local sobre três mulheres sedutoras que matavam e devoravam homens. Aos poucos, o que parecia só folclore começa a se mostrar assustadoramente real, e o filme mergulha numa vibe de horror setentista com moradores esquisitos, garotas fatais, floresta isolada e sustos meio fajutos. A ideia surgiu da parceria entre Reitman e o produtor Daniel Goldberg, que queriam surfar na onda do cinema de gênero que estava em alta, mas sem abrir mão do humor que sempre fizeram. O resultado é essa mistura curiosa, uma paródia meio improvisada que faz mais sentido (e mais efeito) pra quem já conhece os signos do grindhouse, das sessões duplas e do exploitation canadense (um salve pro Cronenberg!).

Mas olha, na minha opinião, tudo isso joga a favor do filme. É justamente essa bagunça controlada, esse jogo entre o terror estilizado e a piada interna, que dá personalidade à coisa. O filme não se leva a sério - e nem quer. Ele abraça o exagero, brinca com o kitsch e se diverte com os próprios clichês. Pra quem curte esse tipo de cinema mais pela atmosfera e pelo estilo do que pela lógica do roteiro, tem bastante o que aproveitar.
Entretanto, o que me interessou mesmo foi o subtexto de três mulheres que são as responsáveis por atrair, manipular e matar homens. Posso até estar viajando, mas há uma inversão de papéis que, mesmo vindo de uma equipe 100% masculina, carrega implicações interessantes. As "canibal girls" não são vítimas, como é comum em filmes do gênero. Aqui, elas são o perigo. Elas seduzem, silenciam e dominam. E mesmo que estejam claramente dentro de um molde fetichista (são sexualizadas, misteriosas, quase sem fala), há uma leitura possível aqui sobre o medo masculino da mulher que age, que tem desejo e que não precisa ser salva.
A personagem Gloria, que acompanha o namorado Clifford na viagem, acaba no centro desse conflito. Ela começa apática, quase apagada, mas vai aos poucos percebendo a estranheza do lugar, das pessoas, e o peso que a lenda das canibais exerce. Gloria não é uma heroína clássica, ela hesita, recua, quase se entrega ao encanto daquelas mulheres. E é justamente aí que o filme, mesmo sem querer, toca num ponto importante: o dilema da mulher que vive entre a submissão esperada e a vontade de romper com o sistema. Lembrei bastante da Silvia Federici falando sobre as bruxas como figuras femininas que resistem ao controle masculino, e que por isso mesmo são historicamente perseguidas. As canibais, com toda a sua estética exagerada, parecem uma versão distorcida da ideia de mulheres que criam um espaço próprio, onde mandam, seduzem e matam, ou seja, que se recusam a obedecer.
Claro, nada disso é exatamente exposto propositalmente pelo filme, é apenas uma divagação particular. Como Reitman comentou em entrevistas, tudo foi muito improvisado, com orçamento apertado e até risco de falência. O próprio uso do “Warning Bell”, um sino que tocava no cinema antes de cenas violentas, mostra que o filme estava mais interessado em atrair atenção do público do que em construir qualquer crítica social. Mesmo assim, acho que vale pensar que filmes como esse, ao exagerarem tanto, acabam revelando coisas que o cinema mais sério esconde. O fato de que a mulher que deseja, que domina e que não depende de homem nenhum ainda seja tratada como ameaça. E que para mostrar isso, é preciso embrulhá-la num pacote de monstro.
Garotas Canibais está disponível na Filmicca, e é uma cápsula do tempo onde mostra um Canadá meio desajeitado, à margem de Hollywood, tentando encontrar sua voz no cinema. É estranho, bagunçado, com atuações meio engessadas e estética barata, um conjunto que resulta em autenticidade. É um filme que indico a assistida só para ser testemunha do início de uma carreira improvável ou pra rir do absurdo de tudo isso. Mas se você olhar com atenção, talvez enxergue algo a mais por trás dos cabelos perfeitos, dos risos nervosos e do sangue falso.
Direção: Ivan Reitman
Duração: 84 mins
Gênero: Terror, Comédia
Elenco: Eugene Levy, Andrea Martin, Ronald Ulrich, Randall Carpenter, Bonnie Neilson +
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