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  • Foto do escritorTati Regis

Swallow e as consequências de um corpo anulado

Zapeando pelo Mubi esses dias, na sessão horror, acabei esbarrando com Swallow, que aqui no Brasil ganhou o título Devorar. É um filme extremamente perturbador e desconfortante, e mesmo tendo sido lançado em 2019, senti a necessidade de escrever sobre ele. A violência e o horror contidos na obra tá longe daquela violência gráfica do body horror tão conhecido, muito pelo contrário, ela praticamente inexiste. Aqui, a abordagem toma rumos não convencionais e é muito mais de um terror psicológico focado na decadência de uma mente traumatizada. Impossível não se abalar.


O filme é sobre Hunter (Haley Bennett), uma mulher que após descobrir a gravidez, passa a engolir coisas e objetos nada nutritivos. Ela é casada com o ricaço Richie (Austin Stowell), herdeiro e filho único mimado. Eles ganham uma super casa dos pais de Richie, e Hunter acaba virando dona de casa e completa submissa. Os dias passam e enquanto o marido sai para trabalhar, Hunter passa os dias sozinha em casa com joguinhos de celular ou fazendo de tudo para tentar agradar o marido que se encontra cada vez mais distante e indiferente. E Hunter cada vez mais isolada. Em Swallow, a fotografia, cores, ambientação, maquiagem e figurino que emula o dos anos 50, foram pensados propositalmente a nos levar a essa sensação de submissão da personagem.


Confira também nosso episódio sobre #002 Swallow (Devorar)


Em seu primeiro longa, Carlo Mirabella-Davis aborda de uma forma delicada, porém deveras perturbadora, um distúrbio psicológico chamado de "Pica". A síndrome consiste em impulsos de ingestão de coisas e objetos não comestíveis e que pode ser desencadeada tanto pela gravidez, quanto por estados de estresse e de traumas.



E é daí que vem a parte extremamente desagradável e aterrorizante da trama. Somos testemunhas e cúmplices de Hunter em suas comilanças estranhas que começam com uma bola de gude e passam a ficar cada vez mais perigosas como quando engole uma tachinha. É de se revirar no sofá de tão perturbadora que é a cena. Mirabella-Davis faz uma construção de personagem muito interessante e complexa. Ela quer se mostrar o tempo todo perfeita e feliz e se tortura por isso cada vez que sente que falhou. "Você é feliz ou apenas tenta se convencer disso?" questiona sua sogra, outra mulher que mesmo tentando passar a ideia de que consegue ser dona da própria da vida, na verdade só está fingindo. Ela quer ajudar Hunter no casamento, mas acaba sendo só mais uma peça de opressão de uma sociedade patriarcal.


Hunter está prestes a uma ebulição e isso só faz com que aumente cada vez mais os desafios de engolir. Eles se tornam perigosos e da tachinha a coisa evolui para objetos maiores e mais pontiagudos. "Não é possível!!" nos questionamos enquanto viramos o rosto. Mesmo anulada, Hunter é envolta em uma atmosfera de proteção pela família do marido, e ao mesmo tempo por um isolamento. Numa ânsia de cura, ela é levada a fazer terapia e aí ficamos sabendo dos possíveis motivos que a faz engolir. Além de saber sobre seu passado e traumas.



A sensação de desmoronamento a invade cada vez que finge ser quem não é. A coisa se confunde entre cuidados com Hunter e cuidados com o bebê e a família contrata uma espécie de enfermeiro/segurança para cuidar da moça. Ele acaba exercendo um papel crucial na trama. A tomada de consciência de Hunter é muito interessante. É quando a gente a vê pela primeira vez enfrentando de forma corajosa o seu passado até a tomada de decisão que a torna realmente independente e dona de si. Dona de seu corpo. Dona de sua vida.


Impossível não se lembrar de várias outras obras em que mulheres se perdem numa expectativa de gênero criada em cima do que se espera de uma mulher seja na sociedade (esposa, mãe e feliz) e acabam perdidas em casamentos infelizes onde tentam se convencer do contrário. O próprio Mirabella-Davis disse em entrevista que para escrever o roteiro, teve como inspiração a história de sua vó. Ela não engolia objetos, mas acabou entrando numa compulsão por lavar as mãos e num dia só gastava 4 barras de sabonete e 12 frascos de álcool isopropílico por semana até ser internada num hospital psiquiátrico e ser submetida a tratamentos medievais.


Pesquisando sobre o diretor, o próprio já se identificou como mulher durante seus 20 e poucos anos e se vestia como tal. Era com o nome de Emma que se apresentava. Anos depois voltou a se identificar e se vestir como o gênero masculino e hoje em dia aos 39 anos se identifica como homem cis. Para ele, ainda é difícil se definir e durante a realização desse filme, Emma sempre o acompanhou.


Enfim, Swallow é filme que merece ser visto e discutido, principalmente após a cena final que pra mim acrescenta mais e mais camadas a uma obra que já é extremamente profunda por abordar temas como problemas domésticos, conjugais e psicológicos ao mesmo tempo.


 

Devorar (2019)

Swallow


Direção Carlo Mirabella-Davis

Duração 1h34min

Gêneros Terror, Drama, Thriller

Elenco Haley Bennett, Austin Stowell, Elizabeth Marvel +

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