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  • Foto do escritorMallu Correa

Raquel 1:1 – O medo agora é outro

Recorrer de uma instituição religiosa e suas crenças para incitar o medo num filme de horror já é uma história velha. Grandes clássicos e enormes bilheterias conquistaram esse posto, principalmente, pelo apelo que essas histórias geram ao retratar possessões demoníacas, a figura do próprio diabo ou qualquer que seja a assombração dita cruel a partir de determinada fé.


“O exorcista”, “Invocação do Mal”, “O bebê de Rosemary”, existe uma lista extensa de filmes que podem ser engendrados na receita de horror com religião que, apesar de muitas vezes não entregar um produto de qualidade, ainda assim é considerado um miojo do gênero, três minutos e está pronta uma história que serve para gerar burburinho, polêmica e quantidade suficiente de medo em espectadores mais sensíveis.


Portanto, quando uma obra se propõe a empregar a cartada da igreja como mecanismo dentro da história, mas se diferenciando do que é comumente entregue nesses filmes, é de se admirar. Se na maioria dessas histórias a igreja é vista como o lugar para combater o mal, o padre é colocado como o único ser possível para exorcizar as personagens e o diabo está sempre possuindo pessoas aleatórias sem motivo plausível algum pois aparentemente ele não tem mais nada para fazer, nos últimos anos, alguns autores têm revisto esse lugar de bem vs mal no horror e reavaliando o papel da igreja, que na maioria das vezes não é tão bondoso assim.


Mike Flanagan fez isso em “Missa da meia-noite”, Rose Glass também abordou lindamente em “Saint Maud” e Anita Rocha da Silveira serviu conceito com “Medusa”, mas um dos filmes que não furou tanto a bolha e soube entregar uma representação mais fiel –desculpe o trocadilho- da igreja, com certeza foi “Raquel 1:1”, lançado em março desse ano e escrito e dirigido pela paulistana Mariana Bastos.

O filme conta a história de Raquel, uma adolescente que se muda para uma cidade nova do interior com o pai após uma tragédia na família. Para fazer novas amizades, ela acaba se juntando a um grupo de meninas de uma igreja evangélica próxima a sua casa. Entretanto, conforme Raquel vai observando as situações que ocorrem na igreja e como as pessoas tratam as mulheres dentro dela, a protagonista começa a se questionar sobre o papel das mulheres na religião e resolve convocar essas meninas para reescrever a Bíblia, retirando e reinterpretando os lugares que as personagens femininas foram colocadas no livro sagrado.


É claro que a rebelião de Raquel não passa despercebida diante de uma instituição que tem como projeto a submissão das mulheres. Dessa forma, a protagonista se vê numa luta contra aquilo que acredita, ao mesmo tempo que tenta se reerguer com o pai em uma cidade nova e repleta de fiéis.


Para além de uma troca de papéis sobre o que é certo e errado, o filme de Bastos vai além e projeta na monstruosidade e na rebeldia de Raquel a verdadeira salvação e a verdadeira libertação dela mesma e de suas amigas. O feminino-monstruoso, conceito que foi alastrado por Barbara Creed, discute sobre personagens femininas em histórias de horror que, por não se adequarem a certas regras e ideias incutidas às mulheres, são retratadas como vilãs e, consequentemente, como os monstros dessas narrativas. A autora, ao abordar o conceito, expõe que “as razões pelas quais o feminino monstruoso horroriza seu público são bem diferentes das razões pelas quais o monstro masculino horroriza seu público. A frase ‘feminino-monstruoso’ enfatiza a importância do gênero na construção de sua monstruosidade” (1993), evidenciando que a monstruosidade abordada nessas histórias está muito mais associada a uma insubordinação dessas mulheres, do que realmente a um papel autônomo maligno.


Se em outras histórias, a monstruosidade é utilizada para condenar as personagens femininas a um destino cruel, em “Raquel 1:1” é essa subversão que acaba sendo a porta de saída das protagonistas da prisão à qual estão inseridas.


Entretanto, ainda que essa libertação das amarras da religião seja considerada um passo otimista, o filme não se propõe apenas a encenar a igreja como a raiz de todo o mal, mas também a compreender as necessidades daqueles que se apoiam nela, a dificuldade e ao literal terror ao tomar a decisão de sair, além da demanda psicológica que é necessária ao se colocar nessa situação. De forma que o espectador sinta a empatia por quem sai e por quem, sem forças, precisa ficar.


“Raquel 1:1” é um filme de horror, mas poderia ser um documentário sobre sua vizinha, sobre sua melhor amiga de infância, sobre sua tia distante ou até sobre você. É uma história que se preocupa em não jogar tudo na conta do maniqueísmo: o diabo é ruim e a igreja boa, o pecado te leva para o inferno e a oração para o céu. Na verdade, ele te leva a questionar sobre o que é bom e ruim e sobre o que tem de bom e ruim nas escolhas que fazemos, que infelizmente nunca é um acontecimento só.


 

RAQUEL 1:1 (2023)



Direção Mariana Bastos

Duração 90 min

Gênero(s) Horror, Thriller, Mistério

Elenco Valentina Herszage, Emílio de Mello, Eduarda Samara, Priscila Bittencourt, Lianna Mateus, Ravel Andrade +


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