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  • Foto do escritorTati Regis

Não! Não Olhe! e o resgate de Jordan Peele

Atenção! Esse texto contém spoilers.

Chegou aos cinemas brasileiros no dia 25 de agosto o mais novo filme de Jordan Peele. Ele, que já tinha nos dado obras sublimes de horror - “Corra!” (2017) e “Nós” (2019) -, em 2022 retorna ao cinema com uma ficção científica misteriosa que abraça ainda o horror e o faroeste. Se em seu primeiro filme Peele quebrou paradigmas e lançou à luz o horror que é o racismo nos EUA, em seus dois trabalhos seguintes não foi diferente, mesmo que de forma menos literal e mais subjetiva. Oterror social pelo qual ficou tão conhecido, ainda está presente em “Não! Não Olhe!”.


Nesta produção, acompanhamos uma família rancheira que vive no deserto da Califórnia treinando cavalos que são usados em filmes e comerciais. Esta é a única empresa desse tipo em que os proprietários são negros. Os Haywood são descendentes direto do jóquei e dublê negro que monta o cavalo na sequencia de fotos que ficou conhecida como a primeira imagem em movimento do cinema. Essa sequência, reconhecida pelo nome do fotógrafo Eadweard Muybridge, não credita o jóquei, assim sendo, seu nome se perdeu no tempo e no espaço. Porém, na fabulação Peele joga novamente luz naquilo que estava escondido dando identidade ao jóquei e transformando-o em Alistair E. Haywood. Dessa maneira, Alistair é tataravô de O.J (Daniel Kaluuya) e Emerald Haywood (Keke Palmer). Os irmãos precisam assumir o negócio da família, a Haywood 's Hollywood Horses, após a morte de Otis (Keith David). O pai do par morreu de forma misteriosa quando objetos metálicos despencaram do céu e atingiram seu olho num evento super misterioso. Os investigadores do caso até deram uma explicação, mas O.J., sagaz todo, não acreditou. Desde então o rapaz passou a desconfiar que alguma coisa de fato acontecia nos céus de Água Dulce.


Próximo ao rancho da família funciona Jupiter’s Claim, um parque simples com tema de faroeste clássico e de propriedade de Ricky ‘Jupe” Claim (Steven Yeun), uma ex estrela infantil. Em 1998 durante a gravação de uma sitcom chamada Gordy's Home, Jupe presenciou o chimpanzé ator Gordy enlouquecer e, num ataque de fúria, espanca, fere gravemente e até mesmo mata alguns de seus colegas. Atualmente Jupe atua como empresário, mas ainda segue perseguindo seus momentos de fama ao ponto de preservar numa sala reservada em seu escritório uma memorabilia com diversos objetos daquele dia fatídico e traumático. Porém, o parque é apenas fachada para algo maior que Jupe planeja e será revelado no filme na horinha certa.



Bom, isso é basicamente “Não! Não Olhe!”, uma cebola que a gente descasca e cada uma de suas camadas até chegar no seu miolo, onde finalmente entendemos como tudo pode dar certo. O mais impressionante disso é que todas essas camadinhas e referências, mesmo as mais delicadas e transparentes, têm sua importância na trama. Sobretudo porque Jordan Peele é mestre em ir deixando pedacinhos de pão como isca pra gente ir pescando.


Com toda a certeza não quero me ater muito a trama em si, pois pessoas as quais admiro já o fizeram de forma magistral como esse texto aqui da Yasmine, esse vídeo aqui da Carissa e esse podcast do Mundo Freak. Hoje, meu texto sobre “Não! Não Olhe!” é para fazer o mesmo que Peele fez agora, em 2022, ou o que Cheryl Dunye fez em 1996 em “The Watermelon Woman” quando decidiu dar atenção às atrizes negras e lésbicas de Hollywood que foram apagadas, construindo uma narrativa de falso documentário e ficção.


A história do cinema estadunidense se mistura com a história negra e se afunilarmos mais, a história negra é a do horror negro, como disse Tananarive Due no documentário "Horror Noire". Ademais, neste documentário o próprio Peele encerra a produção dizendo que suas histórias agora serão sobre nós. Seu mais novo filme não trata diretamente sobre racismo, mas implicitamente ele está lá.

Nos anos 50, quando o gênero sci-fi foi amplamente explorado por Hollywood, a presença de não brancos era praticamente inexistente. Diversas vezes negros e outras minorias foram retratados como o monstro ou a ameaça a ser exterminada. Entretanto vem Peele carregando consigo as fórmulas e tropos já prontos, comuns em filmes sci-fi de OVNIS, realizados à exaustão no cinema, e subverte tudo. Além disso, para completar, ainda inclui na trama minorias as quais não estavam acostumadas a participar desse clubinho como, além dos já citados, o latino Angel (Brandon Perea), um vendedor de tecnologias fissurado em aliens, que ajuda os irmãos Haywood a destruir a ameaça celeste misteriosa. É curioso que mesmo com toda a referência aos grandes filmes e realizadores de gênero, os personagens em “Não! Não Olhe!” estão pouco interessados em repetir ações e clichês. Pouco importa aqui se comunicar com a criatura espacial, pouco importa o “E.T. minha casa, telefone” ou “somos de outro planeta e viemos em paz”. Em outras palavras, o negócio é bruto e territorial. Tomada de espaço, de protagonismo e resistência diante do desconhecido. Negros estão acostumados a serem linha de frente nas batalhas e na trama não é diferente.



Por falar em linha de frente, protagonismo e resgate, voltemos ao início do propósito deste texto e da história real do cinema com Oscar Micheaux e seu pioneirismo. Seu legado deve ser sempre exaltado e jamais esquecido, pois não é à toa que ele é tido como o padroeiro dos cineastas negros. Não podemos esquecer também de Eloyce King Patrick Gist, diretora, roteirista, produtora, autora e pianista que fez filmes em parceria com o marido como o "Hellbound Train" (1930) e "Verdict Not Guilty". Ou também da atriz Fredi Washington que era branca demais para ser negra e negra demais para ser branca,vivia o dilema do não pertencimento e abdicou da carreira por não aceitar ser pintada de branca para continuar atuando no cinema. O pioneirismo na ficção científica veio com "Son of Ingagi" (1940), o primeiro filme de terror de monstros da história do cinema a ter um elenco todo negro, escrito por Spencer Williams e dirigido por Richard C. Kahn. Mais tarde, o incompreendido diretor Bill Gunn escreveu sua obra-prima vampiresca "Ganja & Hess" (1973), a qual vem ganhando reconhecimento a cada ano. E estou citando apenas alguns nomes como exemplo do que foi esse apagamento.


Há ainda a discussão sobre a sociedade do espetáculo e da espetacularização e sobre como isso atinge de forma diferente pessoas negras. Peele demonstra isso numa passagem que muitos sequer vão lembrar. Quando Emerald está no escritório de Jupe olhando as fotos do antigo programa ela pergunta que fim levou o ator que interpretava um garotinho negro no programa e não obtem uma resposta.


O sagaz Jordan Peele vem provando em seus três longas, que a base de formação da sociedade norte-americana e o que ela é hoje, serve de tempero suficientemente para alimentar histórias contadas a partir desse medo da desumanização e da segregação. “Não! Não Olhe!” é também um filme sobre sensações, sobre se sentir bem sobre algo. E eu posso afirmar que Peele me fez muito bem assistindo as aventuras, dores e vitórias de O.J. e Emerald.


*Revisão de texto por Yasmine Evaristo.
 

Nope (2022)

Não, não olhe!


Direção Jordan Peele

Duração 130 min

Gênero(s) Terror, ficção científica

Elenco Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Brandon Perea +

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