top of page
  • Foto do escritorTati Regis

A Garota Negra Raivosa e seu Monstro

“A morte é uma doença (...) a morte é uma doença que quebrou minha família. Se ela é uma doença, ela tem cura e eu vou curá-la”.

Vicara, de acordo com a tradição Páli e Sânscrita, é o pensamento sustentado ou a aplicação sustentada que nos dá base para vermos, ouvirmos, cheirarmos, provarmos ou experimentarmos através dos sentidos do corpo. É assim que construímos as histórias que vivemos e nos apegamos às memórias e pensamentos. Sua função é manter a consciência ancorada, ocupada ou aplicada no objeto. Resumindo, seria o exercício contínuo da mente sobre o objeto. Isso é só para ajudar a situar meu pensamento e por motivos de nomes intrigantes. Fui pesquisar e deu nisso aí. Pode até ser viagem minha e talvez quem construiu o roteiro e desenvolveu a protagonista, nem tenha pensado sobre isso. Só que aí o nome da protagonista é Vicária, então acrescento mais camadas e pensamentos, pois a vicária, no nosso dicionário latino, significa aquele ou aquela que substitui ou faz o trabalho de outra pessoa. Existe também o trauma vicário, que seria em poucas palavras, a empatia ou o excesso dela, quando a gente se sente no lugar de outro que chega a adoecer. Bom, enfim...são pensamentos que me vieram assim que acabei de assistir ao filme e queria dividir com vocês essa viagem, já que a meu ver, acabou que tudo tem quase a ver com a personagem e talvez ao longo do texto isso fique mais claro. Ou não. Melhor assistir.


A partir daqui, o texto pode conter informações que podem ser consideradas spoiler e talvez estragar sua experiência. Se você não tiver problema com isso, continue a leitura.

O filme começa com nossa protagonista Vicária (Laya Hayes) narrando sua teoria sobre morte, vida e doença enquanto vemos cenas de violência e tiroteios entre gangues. Ela vive num ambiente cercado por isso e viveu a morte de mais perto quando sua mãe foi assassinada, logo em seguida seu irmão Chris (Edem Atsu-Swanzy) e está vendo seu pai Donald (Chad Coleman) seguir pelo mesmo destino quando se refugia nas drogas para tentar lidar com o luto e as perdas. Mesmo assim, ele ainda consegue lucidez para educar a filha e apoiá-la. Isso fica bem claro quando ele é chamado na escola e não abaixa a cabeça para as sugestões da professora branca, a qual está ali como representação de uma branquitude que não suporta as conquistas da comunidade negra. Vicária é uma adolescente de 17 anos que está no ensino médio, superinteligente, afrontosa, tem seu próprio laboratório, não leva desaforo para casa, como seu pai e também, como ele, não abaixa a cabeça para seu ninguém, mesmo que esse ninguém seja o durão Kango (Denzel Whitaker), o chefe do tráfico de sua vizinhança ou o policial de sua escola majoritariamente branca quando é chamado pela professora por não gostar das interrupções e questionamentos discordantes da aluna.


A Garota Negra Raivosa e seu Monstro, em uma tradução literal, digamos, é uma adaptação bem livre do livro Frankenstein (ou O Prometeus Moderno) de Mary Shelley escrito em 1818 quando ela tinha 18 anos, quase a idade da nossa protagonista e as semelhanças não param por aí, como por exemplo Shelley, mulher do século 19, não era ouvida e silenciada numa época extremamente carregada de pensamentos machistas e, Vicária, mesmo vivendo em pleno século 21, sendo mulher e negra, é constantemente silenciada e deixada de lado. Ainda há um fato que é potente e relevante para a vivência de Vicária, ser mulher negra na américa é viver em constante alerta sobre a morte e conviver diariamente com esse horror interno. Gosto muito de como Bomani trabalha aqui, pois ao mesmo tempo que aborda temas mórbidos, busca a humanidade de pessoas que geralmente são vistas como animais monstruosos e desumanizados.

Esta não é a primeira adaptação de Frankenstein com protagonismo negro ou atrelada a comentários sociais/raciais. Tivemos em 1973 em pleno blaxploitation uma adaptação da mesma história, mas nem vou me desenvolver mais, pois é um filme tão problemático que nada tem a ver com a seriedade da mais recente adaptação. Aqui, temos um filme de terror que mistura fantasia, ficção científica, drama e comentários sociais escrito e dirigido por Bomani J. Story estreando na direção. Vicária é uma versão feminina/negra/pobre/adolescente de Victor Frankenstein, uma jovem que tem o desejo de driblar a morte/doença e brincar de Deus. Para provar seu ponto, ela passa a “sequestrar” corpos de vítimas da violência local para assim construir sua criatura e ressuscitar seu irmão morto. Só que tudo começa a ficar muito sombrio, brutal, violento e cheio de vingança. A criatura de Vicária ganha vida, mas logo passa a acreditar que é um monstro, já que todos que cruzam o seu caminho, o veem assim. Uma espécie de “o homem nasce bom, o meio é que o corrompe”. Ele renasce, aprende a ser “humano” com a pequena Jada (Amani Summer) que escondido de todos lhe ensina a falar para logo em seguida quando "aparece" para o mundo, ser corrompido e virar o monstro.


Toda a ambientação me lembra muito os “projets” Cabrini Green de Candyman (1992) ou os da série The Wire, aquele ambiente feito exclusivamente para juntar os “indesejados” de uma sociedade gentrificada e que logo são esquecidos pelo poder publico lhes restando o destino cruel do tráfico, do vício ou da prostituição. Todos têm seu quinhão sombrio de cheiro de morte e sangue, mas sempre há aqueles que não se conformam ou não se acostumam com isso e tentam se manter o mais longe lutando por uma vida melhor se apegando ao amor, aos estudos e à família, como é o caso de Aisha (Reilly Stith), viúva e grávida de Chris, ela, seus irmãos mais novos Jada e Freeman (Dale Cordice Jr ) e sua mãe solo Secoiya (Tracie Frank) lutam por uma vida fora do que o sistema estadunidense esperam que eles sejam.


Vicária não segue o fluxo de um lugar que se acostumou com morte e violência, ela quer mudar. Em contrapartida, o curioso é que a partir de seu feito, o ciclo ao qual ela quer tanto fugir, se volta para ela. Vida, morte, poder, dominação, empatia. São coisas e sentimentos que permeiam a trama desafiando até o que a gente, como espectador, conhecemos sobre tudo isso. Heroína ou vilã? Bomani não nos responde e deixa esse binarismo para quem estiver afim de discutir isso, pois o filme vai além, toca em feridas tão sistêmicas e corrompidas que tem até o poder de incutir na gente a tal da responsabilidade individual que, mesmo destruídos pela brutalidade do dia a dia, só nos resta resistir, sobreviver e renascer todos os dias. Mesmo com um comentário social fortíssimo, A Garota Negra Raivosa e seu Monstro não é panfletário e tem um texto bem inteligente sem ser expositivo. Também não foge do seu gênero principal, o horror. Tem sangue, mortes violentas, carnes podres e muito gore.


Bomani J. Story mostrou ser um diretor criativo, desde cedo na sua vida já se sentia atraído pelo gênero quando entrou em contato com o livro de Shelley primeiro que a adaptação de 1931. Em entrevista, ele diz que quando acabou de ler, pensou: “tenho que fazer alguma coisa com isso”. Uma coisa que Bomani observou no livro, é de como ele é atemporal e pode se adaptar a várias épocas e contextos. Muito de sua influência para escrever histórias ou roteiros, vem também de grandes clássicos do terror como O Massacre da Serra Elétrica (1974), Noite do Terror (1974), Halloween (1978) e O Iluminado (1980), inclusive esteticamente com cores, texturas e iluminação, mas também de como são filmes que tratam de morte e monstruosidades ao mesmo tempo em que buscam certa humanidade. Bomani ainda tem planos de continuar a dirigir filmes de gênero e já tem trabalhado num roteiro, só que dessa vez puxado mais para a fantasia. Vamos acompanhar.

 

THE ANGRY BLACK GIRL AND HER MONSTER (2023)


Direção Bomani J. Story

Duração 91 min

Gênero(s) Horror

Elenco Laya DeLeon Hayes, Denzel Whitaker, Chad L. Coleman, Reilly Brooke Stith, Keith Holliday, Edem Atsu-Swanzy +




Posts recentes

Ver tudo
bottom of page