Faz algumas semanas que uma apatia toma conta de mim e a julgar pelo momento atual, posso dizer que não sou a única. Esse foi o motivo do meu sumiço e peço desculpas aos leitores e leitoras. Escolher ler Kindred parece ter sido um acerto, pois é um livro magnífico e fez reaparecer em mim a vontade por alguma coisa. A estória é deveras empolgante e mesmo sendo extremamente triste, a escrita de Octavia Butler te vicia, falando de medos, opressões, violência, submissão e tantas outras mazelas atreladas a escravidão com uma forma não convencional de se tratar tal tema. De forma magistral, Butler usa a Fantasia e a viagem no tempo para escrever também sobre ancestralidade familiar e sacrifícios.
O plot traz Dana, uma mulher negra escritora de 26 anos, casada com Kevin, homem branco também escritor. Eles moram em Los Angeles na década de 1970 e acabaram de se mudar. Arrumando umas caixas de livros, Dana de repente se sente tonta e volta para o Sul, precisamente Maryland dos anos 1800 pré-guerra civil americana. Ainda sem saber o que está acontecendo, ela salva uma criança branca de se afogar, mas uma arma apontada em sua direção, a faz voltar para seu tempo e a partir daí tudo tende a ficar cada vez mais estranho. Ela volta mais vezes e a cada ida ao passado, sua passagem lá se torna mais longa e perigosa. Além de lidar com os dilemas de seu lugar na história e os perigos da época para uma mulher negra, ela tem que aprender a lutar e a como voltar para seu tempo real antes que morra mesmo sem nascer.
Kindred é um livro esplendoroso (eu já falei e não canso) mesmo tendo uma trama indigesta, assustadora e muitas vezes violenta. Ao escrever, Butler faz uma reconstituição perfeita e dolorosa da época, nos fazendo questionar as decisões de Dana por diversas vezes. Não era incomum o ódio me tomar conta a ponto de fechar o livro e só reabrir dias depois. Kindred é também sobre várias frentes de poder, seja o poder destrutivo do subjugamento ou o poder de controlar a vida e também a morte. O poder de uma família unida, mesmo que da forma mais equivocada. O poder das relações e o poder do conhecimento. O poder de quem nunca experimentou o poder. Kindred é essa mistura de sentimentos. É saber que suas convicções serão postas em dúvidas te fazendo pensar "e se fosse eu no lugar de Dana?". Claro que de longe a gente tem resposta pra tudo, mas e lá? Sabendo de todas as ligações e cargas que aquelas pessoas e aquele lugar carregam de tua vida, tua história e tua ancestralidade? Outra discussão interessante que a autora traz é sobre a relação inter-racial de Dana e seu marido e a limitada empatia dele às escolhas de sua esposa. Chega a ser irritante e decepcionante em alguns momentos.
Não tem como terminar Kindred e ficar alheio. Não ser tocado ou permanecer igual como era antes de ler. É uma obra que te faz pensar sobre o passado, mas principalmente sobre como esse passado formou e ainda forma nosso presente. O terror de uma sociedade escravocrata que traz reflexos até hoje seja lá nos EUA, aqui no Brasil ou em qualquer outro lugar que viveu o horror da escravidão. A escrita de Octavia te deixa profundamente envolvido na vida de Dana, Kevin, Alice e família Weylin. Nas dores e medos dos negros escravos. Não à toa ela é tida como a grande dama da ficção cientifica, embora ela tratasse Kindred mais como fantasia. Gosto como a viagem no tempo é trazida aqui de uma forma que chega do nada e não é explicada, sendo usada meramente para trazer todas as discussões sociais sobre raça, classe, poder e gênero. Foi o primeiro livro que li da autora e pelo que andei pesquisando de suas abordagens, está a ponto de se tornar uma das minhas favoritas. Que venham as próximas aventuras!
Kindred: Laços de Sangue
Autora Octavia E. Butler
Tradução por Carolina Caires Coelho
Ano da Edição 2017
Páginas 432
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