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Crítica sobre o filme Alucarda de 1977

  • Foto do escritor: Tati Regis
    Tati Regis
  • há 13 minutos
  • 4 min de leitura
Saitan, Saitan, Saitan… nosso senhor e mestre, reconheço a vós como meu deus e príncipe. Prometo viver e obedecer enquanto viver, renego outro deus e todos os santos. Prometo servir e obedecer enquanto viver, renego outro deus e todos os santos.

O horror mexicano da década de 1970 encontrou em Alucarda (1977), de Juan López Moctezuma, uma de suas expressões mais radicais. Inserido no subgênero do nunsploitation, o filme absorve influências que vão do expressionismo alemão ao horror gótico europeu, mas subverte essas referências com uma abordagem febril e transgressora. A atmosfera opressiva de seu convento isolado, as freiras cujos hábitos parecem manchados de sangue e os gritos quase incessantes de suas protagonistas fazem de Alucarda uma experiência cinematográfica intensa e singular. Mas, além da blasfêmia e do horror corporal, há também uma carga homoerótica que atravessa a narrativa, tornando a relação entre suas protagonistas não apenas subversiva, mas incendiária.


Moctezuma, que produziu os primeiros filmes de Alejandro Jodorowsky, Fando e Lis (1968) e El Topo (1970), carrega em Alucarda muita dessa conexão artística. Assim como o cinema de Jodorowsky, seu filme mergulha no simbolismo extremo, na crítica feroz à religião e na construção de imagens alegóricas de profunda estranheza. Essa inquietação formal, herdada de suas colaborações com Jodo, é visível em cada cena de Alucarda, onde o exagero, o grotesco e a sensualidade operam como uma linguagem própria.

Na trama, a chegada da jovem Justine (Susana Kamini) a um convento após a morte dos pais desencadeia um mergulho no desconhecido, especialmente quando ela se aproxima de Alucarda (Tina Romero), uma figura enigmática e inquietante. Entre possessões demoníacas, rituais profanos e um erotismo que parece ter ficado preso naquele tempo e dificilmente voltaremos a ver, o filme constrói um pesadelo visual e sensorial que desafia os limites entre o sagrado e o profano. Se em muitos exemplares do horror gótico a ameaça sobrenatural se apresenta como um inimigo a ser vencido, Alucarda inverte essa lógica ao colocar suas protagonistas como figuras de uma revolta quase apocalíptica contra o dogma religioso. 


Já a marca do Nunsploitation, tem ligação direta com o claustro feminino, o delírio e a repressão daquele convento. A presença de freiras em situações de erotismo, tortura ou possessão demoníaca não é exclusividade de Alucarda, mas aqui o uso do templo religioso como espaço de tensão entre desejo e controle é elevado ao ápice. Filmes como Os Demônios (1971), de Ken Russell, ou Madre Joana dos Anjos (1960), de Jerzy Kawalerowicz, também exploram essas intersecções entre fé e pecado, mas Moctezuma insere esse universo dentro de uma estética radicalmente alucinada, nele, o hábito religioso é rasgado, incendiado e violentado em nome de um grito que é tanto liberação sexual quanto confronto direto com a moral instituída.


Alucarda é também uma adaptação bastante livre de Carmilla, a novela vampiresca escrita por Le Fanu em 1872, anterior até mesmo a Drácula. Se a obra original já abordava de forma velada o desejo entre duas mulheres, o filme de Moctezuma transforma essa sugestão em explosão: a relação entre Justine e Alucarda é de cumplicidade, intensidade emocional e desejo reprimido, tudo incentivado e distorcido por uma presença maligna que atua como catalisador da transgressão. O erotismo não surge como um elemento decorativo, mas como parte do colapso entre fé e pecado, pureza e luxúria. A possessão demoníaca que toma conta das personagens parece inseparável do despertar sexual que vivem.

imagens filme Alucarda (1977)

Esse mesmo diálogo com Carmilla também se revela na presença do vampirismo como metáfora do desejo e da contaminação. Ainda que o filme nunca adote explicitamente a estrutura clássica de um filme de vampiro, há momentos em que o ato de compartilhar sangue entre as meninas, numa cena marcante de iniciação, evoca o simbolismo vampírico da união carnal, do pacto de sangue e da subversão da vida e da morte. O vampiro aqui não é uma criatura com presas, mas uma presença difusa que se manifesta na relação obsessiva entre Alucarda e Justine. A mordida dá lugar ao grito, mas a transformação permanece.


Antes de finalizar esse texto, preciso falar dela: Tina Romero. Ela que encarna de corpo e alma em uma entrega notável, Alucarda. Sua performance oscila entre o infantil e o demoníaco, o vulnerável e o ameaçador, tornando sua personagem uma figura que tanto atrai quanto perturba. Romero, que mais tarde se tornaria um nome recorrente no cinema e na televisão mexicana, oferece aqui uma das interpretações mais intensas do horror latino-americano, ajudando a consolidar a figura da jovem possuída como símbolo de ruptura, histeria e desejo reprimido. Ao lado dela, Susana Kamini também sustenta uma vulnerabilidade crescente que espelha o descontrole da narrativa.


Hoje, Alucarda é celebrado como um dos grandes filmes de culto do horror dos anos 70. Todos os elementos que formam a obra, o colocam como uma obra limítrofe, onde o cinema de gênero se funde com o experimental, o simbólico e o político. É verdade que, ao assistir ao filme pela primeira vez, algumas pessoas podem se incomodar com o excesso de sangue, os gritos constantes ou a profanação explícita de imagens sacras, e tudo bem. Mas, é justamente nessa entrega absoluta ao excesso que o filme encontra sua força. 


Em um momento em que o horror internacional começava a explorar os limites do corpo, da identidade e da fé, como em O Exorcista (1973), Suspiria (1977) ou A Semente do Diabo (1979), Alucarda se destaca por incorporar essas tensões a partir de um cenário marginal e de baixa produção, mas com uma inventividade visual e simbólica que o eleva muito além do rótulo de exploitation. No panorama das produções que buscaram desafiar o moralismo e expandir os limites da linguagem cinematográfica, a contribuição de Moctezuma é inegável, seu filme não é apenas mais um exemplar de horror satânico, mas um grito desesperado por liberdade.


Trailer de Alucarda
 

Direção: Juan López Moctezuma

Duração: 77 min

Gênero: Horror

Elenco: Tina Romero, Susana Kamini, Claudio Brook, David Silva, Lily Garza, Tina French +

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